No artigo de hoje, resolvemos começar a dar voz a quem já passou pela situação de rua.
Com vocês, Eliana Toscano, 50 anos, de São Paulo.
“O feijão vai morrer pra nascer um caulinho, pra vir uma nova planta. A mesma coisa somos nós. A gente morre todo dia pra poder nascer.” Eliana Toscano
Foto: Eliana Toscano
Mãe de duas filhas, Eliana passou dois anos em situação de rua. Antes disso, ela conta ter feito um trabalho voltado para essa população na Cracolândia, no bairro da Luz, em São Paulo durante dois meses e meio.
“Abri mão para ter paz.”
Ao se separar do ex-marido, o rompimento do vínculo familiar, o desemprego, o desrespeito dentro de casa e a falta de oportunidade acabaram levando-a a sentir na pele essa realidade invisível aos olhos de muitos. “Abri mão para ter paz”. Ela esclarece que ninguém está nessa situação porque quer. Essa conjunção de fatores é determinante para que uma pessoa decida seguir por esse caminho, e ninguém está livre de passar por isso.
Foto: Fluxo da Cracolândia, em São Paulo
“Estar em situação de rua é confortável? Não. Te ensina muita coisa? Muita. Te tira muita coisa? Já tira a dignidade. Perdeu a dignidade... É uma luta constante ali, todo santo dia.”
Falando sobre momentos em que sentiu a aporofobia de perto, ela relembra uma ocasião em que sentiu a diferença no tratamento que recebia por parte do dono de um restaurante cujo banheiro ela usava. Enquanto ele não sabia que ela estava se abrigando debaixo de uma passarela, ele permitia que ela usasse o banheiro. A situação mudou quando ela foi vista deitada em seu abrigo.
Outro momento foi quando ela havia enviado o seu currículo para concorrer a uma vaga de emprego no bairro de Interlagos, na Zona Sul de São Paulo. Ela foi selecionada e, no dia da entrevista, contou a sua real situação, deixando claro que fazia planos de alugar um barraco numa favela a fim de se reconstruir. E foi justamente por falar a verdade que ela não foi aprovada.
Foto: Eliana e seu companheiro, Alex Conceição
“Na rua, se diz: Respeite a minha história.”
As coisas começaram a mudar com o convite de uma amiga, Maria Eulina Hilsenbeck, que trabalhava no Clube de Mães do Brasil, para participar do processo seletivo para trabalhar como assessora técnica no Comitê PopRua de Direitos Humanos, na Prefeitura de São Paulo. Ela explica que, nesse comitê, a sociedade civil, as ONGs e as pessoas em situação de rua dialogam com o poder público para fazer melhorias. Em 27 de março de 2019, ela recebeu um telefonema com a notícia que tanto esperava. A partir de então, ela voltou a trabalhar em prol daquele povo que ela tanto ama. Eliana diz estar em fase de ressocialização e hoje mora no município de Poá e tem planos de criar uma residência inclusiva para mulheres em situação de alta vulnerabilidade.
“A vulnerabilidade cresceu muito. Digamos que, com a pandemia, a sociedade foi jogando pra debaixo do tapete e acabou tropeçando naquela mesma montanha que ela fez. E a gente tropeça e vê que tá tudo no chão. E o chão durante dois anos foi minha morada, minha mesa, minha cadeira, o meu sofá, o meu guarda-tudo. Por incrível que pareça, eu tenho muita saudade da rua, porque a rua tem regra, bem diferente da sociedade que chamo de ‘normativa’, que de normativa não tem nada. A rua é escancarada. Não dá pra ter hipocrisia, falsidade, falar mal do outro. É um corre pela sobrevivência. (...) Na rua, a palavra tem valor, coisa que a sociedade perdeu pelo caminho.”
Foto: Informe do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua/POLOS-UFMG - Outubro de 2022.
“A sociedade tem muito o que aprender com a rua.”
Eliana conta que o uso de álcool e outras drogas acontece muitas vezes para as pessoas se anestesiarem um pouco da realidade. Ela ressalta que isso é uma doença, é caso de saúde pública. “A sociedade tem muito o que aprender com a rua. Começando por sua própria nudez moral. Porque na rua ou você é, ou você não é. Ou você tem, ou você não tem. E a gente tem uma coisa chamada caráter. (...) Por que a sociedade tem medo da rua? Porque ela tem medo de cair na mesma situação, de perder tudo, de perder seu status quo. Na rua, você não tem nada. E é horrível você pedir. É horrível você depender dos outros.”
Para ela, apesar de haver muitos grupos de voluntários e instituições idôneas que ajudam a população de rua, algumas faturam em cima da desgraça dos outros. “A Prefeitura tenta fazer alguma coisa, mas o bracinho é curto, a caneta não tem tanta força, e parece que a gente vive num grande desequilíbrio ecológico-social. A gente precisa fortalecer a base da pirâmide. Tirando a alimentação da pessoa, a saúde, o básico, a sua dignidade, o que que ela vai ter? Como é que ela vai lutar? A gente fica na posição de pedinte, dependente. E se faz uso de drogas, piorou.”
Foto: Pessoa em situação de rua na Avenida Presidente Vargas/RJ
“Onde foi que nós evoluímos?”
Nossa entrevistada reflete: “O que nós precisamos hoje nessa sociedade é conversar, dialogar, acolher, não preconizar nunca. (...) Todos nós somos ricos, milionários, em tempo. E se a gente doar um pouco desse nosso tempo pro próximo e fazer essa troca, a gente tá trocando riquezas. Riquezas de histórias, riquezas de vida, de experiência. Seja a mudança que você quer ver no mundo.”
“Na verdade, tudo é passível de mudança, mas os métodos são ineficazes. A gente precisa passar por uma grande revolução social, educacional, de saúde, uma renovação das leis, praticar um pouco mais a empatia... Não ser trouxa, nem bobo, porque na rua isso não acontece. Tem que mudar, dando oportunidade de verdade. (...) No domingo, assisti a uma matéria no Fantástico sobre o encontro do neandertal e o homo sapiens. O narrador falou que foi um encontro entre espécies. A espécie é uma só. É o ser humano. A diferença foi nossa evolução. Deixo aqui o meu questionamento: onde foi que nós evoluímos?”, conclui.
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